CIDADÃO QUEM?
Se
há um elo entre o passado, o presente e o futuro da história do cinema mundial,
gostem ou não, este elo se chama Cidadão Kane. O filme, lançado na distante
década de 40 do século passado, mais especificamente em 1941, dirigido e também
estrelado por Orson Welles, não é por mero acaso tido como o melhor de todos os
tempos. Não é preciso ser nenhum especialista para diferenciar a obra de Welles
da maioria dos filmes que conhecemos; em apenas um filme, Welles reúne elementos
de sua própria época, elementos que são utilizados ainda hoje e elementos que
continuarão, na certa, sendo técnicas cinematográficas por muito tempo. A cada
dia que passa fica mais clara a genialidade e a contemporaneidade de Welles ao
realizarmos uma análise de Cidadão Kane.
Em um primeiro momento, ao constatar
que o filme é completamente em preto e branco, o espectador pode ter uma imagem
de que a história que se seguirá será arrastada e ultrapassada, de que o filme
será um símbolo do cinema antigo. Ledo engano: logo no dinâmico início
percebe-se a inovação – seja de técnicas de filmagem, seja das atuações de
destaque de boa parte dos atores, seja na trilha sonora imponente e destacada,
seja na abordagem da narrativa completamente revolucionária – que Cidadão Kane
traz consigo.
Contando
a trajetória de vida do magnata da imprensa e megaempresário Charles Foster
Kane a partir de sua morte e da revelação da misteriosa palavra “rosebud”, seu
íntimo segredo, trata de forma muito crítica – ao espectador displicente ou
desavisado, o tom crítico da obra pode não ser explícito, mas é justamente esta
implicitude que fascina e estimula – das relações da imprensa e do capitalismo
com o povo norte-americano, relações que vão gradualmente sendo mais expostas
ao longo do filme. A narrativa não-linear leva o espectador a não querer perder
um segundo sequer e a pensar junto com o desenrolar dos fatos que contam a
história de altos e baixos de um homem que, a despeito de suas origens
humildes, herdou, além de uma bolada e de outros bens, um jornal que virou sua
obsessão pessoal e razão de viver.
Supostamente
baseado na vida de William Randolph Hearst, homem que se assemelhava muito ao
estilo do fictício Kane – fato nunca admitido por Welles –, o filme tem como
principal tema a manipulação das massas pela mídia. Nada ortodoxo, o modo de
fazer jornalismo de Kane – homem implacável e impetuoso – vai sendo exposto
numa crítica que anda paralela à realidade da imprensa dos Estados Unidos à
época (e por que não também hoje?). Manchetes a qualquer preço, notícias
plantadas, escândalos midiáticos, opinião pública influenciada em razão de
interesses pessoais, todos estes elementos contribuem para a riqueza da obra,
que dizem não ter sido mais reconhecida por Hollywood justamente em razão de
ser supostamente uma crítica a um figurão da mídia à época, que teria feito uma
verdadeira caçada ao filme nos bastidores.
A
história é contada por meio de inovadores e precisos flashbacks desde a
infância do magnata, passando por todas as fases da vida e por pessoas que se
relacionaram a Kane, sempre revelados pelo repórter a quem foi incumbido
descobrir o segredo da palavra misteriosa. Aos poucos vai sendo desnudada a
triste realidade do rico homem que, com o passar de uma vida repleta de
ambições, luxo e riqueza material, se vê cada vez mais sozinho e infeliz.
O
filme ainda levanta uma série de outras questões que, apesar de não serem o
cerne da discussão, merecem destaque. A sujeira da política, que faz com que
adversários ataquem com todas as armas que têm, por mais sujas que sejam, a
banalização dos relacionamentos conjugais, o poder do dinheiro, entre outras
questões elevaram o filme a uma categoria que à época não existia: a crítica
social. Excetuando-se Chaplin, é claro, além de raras exceções, pouquíssimos
filmes aspiravam algo maior do que simplesmente entreter as pessoas, e Cidadão
Kane foi um dos pioneiros na união entre entretenimento e crítica.
Referência
até hoje, a obra de Welles deve ser saudada como a influência básica para todo
amante do cinema. Cidadão Kane é como um ponto de partida, é o filme que muda a
forma de se ver cinema. A revelação, nos últimos segundos, do segredo que
permeou a história de Charles Foster Kane, que a partir daí nada mais é do que
um infeliz menino à procura de referências que nunca mais encontrará, fecha de
maneira ainda mais espetacular a obra, uma verdadeira reflexão sobre os
propósitos da vida.
Fernando V. P. Dias
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